quarta-feira, 5 de março de 2014

A Biblioteca Submersa

Eu fui uma criança com livros. Vivi numa fazenda com animais que queriam fazer uma revolução e acabar com um sistema e me desesperei com a estupidez das ovelhas. Essa foi a primeira história que lembro que minha mãe me contou, em capítulos, durante algumas noites, recostada na minha cama.
Depois eu conheci Moinhos de ventos e desejei saber onde era a Birmânia e ficava com dó daquele rapaz que precisava carregar água, escondido, para poder fazer chá.
E minha avó, que não era criança mas tinha uma grande pilha de livros de cabeceira, um dia foi perdendo a visão, mas não o amor pelas história enluvadas dentro de capas de papel. E aí ela me pedia para ler “um pouquinho”, em troca de uma história “de boca” (era sempre a mesma, “O gato de botas”, não por falta de criatividade da contadora, mas da ouvinte, apaixonada por gatos e ainda mais pelos que usavam botinhas). E com isso conheci véus pintados, senhoras do baile, vinte mil léguas e tantos outros lugares, algumas vezes tentando imitar as vozes, as vezes meio sem vontade de ler, mas como minha avó nunca reclamava e nem ao menos pedia pra continuar, eu virava mais uma página, mais uma, mais uma...
Meu pai tinha um escritório em casa. Um lugar cheio de livros, empoleirados até o teto. Era quase o templo do seu Raul, lugar sem muita permissão pra entrar com mistos quentes (geralmente só de queijo, porque carne era uma coisa menos bem vista na minha casa do que na dos outros), nem canecas recheadas de sorvete de flocos (o meu pecado capital da infância, permitido simplesmente por eu ser inapetente). Lá era solo santo e aí de quem tirasse algum livro do lugar, mesmo que parecesse impossível haver alguma ordem naquilo: capas diferentes, tamanhos desiguais... Eu vivia pensando em encaderná-los, todos iguais. Hoje tremo só ao pensar nisso. Foi lá que achei um livro que meu pai disse que eu poderia ler.
E de homem à barata, por uns dias pensei que todas as mudanças acontecem quando menos esperamos.
Ganhei alguns livros de poesia, tinham desenhos, eram bonitos. Mas os desenhos me desinteressavam logo e queria mais letras. Porque demorou muito pra que eu conseguisse ler direito, já havia passado dos seis e ainda começava de trás pra frente.
Fui criança com livros. Adolescente com livros. Depois entrei na fase de mudanças e sempre percebia que o maior número de caixas estava recheado de páginas. Eu carreguei sempre uma casa de caramujo, de Dr. Caramujo, feita de papel, cola e tinta.
Ainda devo ser uma criança com livros. Eu durmo entre eles; no quarto ficam os favoritos; nas salas os comunitários; na cozinha sempre tem um extraviado que alguém esqueceu de por no lugar. No quarto das crianças, os que eles já escolheram.
E me abaixo, enquanto minha filha faz um voo rasante em sua vassoura e o Pã acaba de sair do vórtice da perspectiva total, completamente satisfeito consigo mesmo.
Eles também são crianças com livros.

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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

A incoerência do vestibular

Olá, esse é nosso primeiro texto do Blog da 42. Poderia iniciar falando sobre escrita.

Mas na verdade acredito que seja melhor falar sobre leitores.

Temos uma deficiência na formação de novos leitores. Claro que não essa não é a única razão para que haja tiragens menores, o que responderia a muitos escritores a tal pergunta “por que não consigo vender”. Cada vez mais as editoras procuram a impressão por demanda, ou seja: imprimem o que vão vender, reduzindo assim o custo com estoque, armazenamento e inclusive amenizando prejuízos. Mas me deparei com algo que me chamou a atenção. Tenho um filho no segundo colegial, garoto que herdou o amor pela leitura e que possuiu uma pequena coleção com mais de 150 livros, todos já lidos; o que chegaria próximo de 18 livros lidos por ano, número quase 5 vezes maior que a média nacional.

E não é só isso. Meu filho gosta de Érico Veríssimo, de Monteiro Lobato e do Barão do Itararé; tudo isso colaborou para meu espanto quando ele anunciou que não leria o livro pedido para a prova de literatura. Me assustei, já que é ótimo aluno e não costuma deixar seus deveres incompletos. Perguntei o porquê daquilo. Ele me disse somente: Almeida Garret. Eu não entendi por que a negação, por que não ler Almeida Garret? “Mãe, é impossível ler isso e me sentir envolvido, é outro português, outro ritmo, a leitura não flui”. Na hora tudo fez sentido. Claro, como ler algo sem ritmo, sem identificação? E como fazer com que jovens acostumados à televisão (para não citar computadores, vídeo games, celulares e iPads), à tecnologia e a uma sociedade em constante mutação, se sintam atraídos por textos tão distantes da realidade deles? Será que os grandes clássicos são os únicos representantes legítimos do nosso idioma e de nossa arte literária?
Para que haja leitores é necessário que se formem leitores. O raciocínio é simples. A conclusão que tiramos é que estamos formando menos pessoas interessadas por livros.

Onde estamos errando? Provavelmente é um efeito acumulativo, já que a educação brasileira aponta, não somente uma instrumentalização, como uma deterioração há mais de 30 anos. Ou seja, os pais de hoje já foram leitores desmotivados a partir da sala de aula. E os jovens que serão os futuros leitores também não são encorajados a ler. Como um garoto pode se identificar com a linguagem de Almeida Garret? Ou mesmo com os costumes relatados por José de Alencar? Pedimos para que adolescentes se espelhem em um mundo desconhecido, antigo, trancado em prateleiras e armários (o que não reduz sua excelência, mas não os tornam atrativos para quem está “aprendendo” a leitura). E com isso, prejudicamos, inclusive, a produção literária atual do país, criando uma resistência à leitura quando forçamos um engessamento por modelos literários com mais de 100 anos.

Vejo a necessidade de repensarmos o ensino da literatura, e o descobrimento de “novos clássicos”, de livros contemporâneos que tenham qualidades para inspirar e motivar, não somente o entendimento da literatura, mas o amor à leitura.

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